Ontem maniqueísmo, hoje nuance.
HISTÓRIA A
No que parece ter sido um trágico erro do exército israelense, três das filhas do médico palestino Dr. Ezzeldeen Abu al-Aish foram mortas no penúltimo dia da operação em Gaza, quando um tanque atirou contra morteiros vizinhos, atingindo erroneamente a sua casa. O médico, que trabalhava em um hospital em Israel, e que costumeiramente passava boletins à TV israelense sobre os feridos de Gaza, ligou desesperado para o canal de televisão israelense e a ligação foi transmitida ao vivo. Um dos jornalistas conseguiu autorização para entrar em Gaza e, evento inédito nas circunstâncias, uma ambulância palestina foi admitida a cruzar a fronteira. Os familiares feridos sobreviventes foram levados para um hospital em Israel. O dramático vídeo desta tragédia humana pode ser visto no Youtube (reportagem da Al-Jazira
aqui, vídeo apenas com o registro do evento ao vivo na TV israelense
aqui). Morreram três de suas filhas de 22, 15 e 14 anos e mais uma sobrinha de 14 anos. Outras duas filhas estão sendo tratadas em um hospital em Tel Aviv. O pobre homem está, naturalmente, revoltado.
Em seu blog, Idelber comenta:
"Se alguém se julga em condições morais de julgar este pai caso ele decida se converter em homem-bomba, por favor, envie cartas para a redação."Idelber não costuma responder cartas para a redação, mas, de qualquer modo, não acredito que o bom doutor vire um "homem-bomba". Engana-se Idelber ao pensar que os homens-bomba são vítimas movidas pela "dor" ou pelo "desespero". São movidos pela "glória" ou pelo ódio inculcado e, ao contrário do doutor, são em geral jovens entre 15 e 25 anos.
Em matéria da BBC de 18 de julho de 2001, portanto antes da saída de Gaza e antes mesmo dos ataques de 9/11, há um interessante
artigo sobre as "escolas de homens-bomba" na então ocupada Gaza. Um trechinho:
Uma nova geração de crianças, garotos palestinos de 12 a 15 anos, está crescendo no meio do conflito e da violência. Os garotos são informados que não apenas é bom morrer, como também matar.
Mohammed, um garoto de 14 anos, se desenha a si mesmo com explosivos atados ao seu corpo, pronto para se explodir se isso significa matar judeus. "Sim", ele responde quando lhe perguntam se quer ser um homem bomba. "Quero liberar a Palestina e ser parte da revolução". Os garotos são ensinados que dando suas vidas terão garantido um lugar no céu. E ser um homem-bomba é uma das maiores formas de martírio.
A reportagem conclui que, apesar das críticas de Israel a essa propagação do ódio,
o povo de Gaza insiste que trata-se de uma resposta direta à ocupação israelense e que quando os israelenses deixarem o território palestino, as crianças não mais serão incentivadas à violência nem sonharão em tornar-se homens-bomba.
(Israel saiu de Gaza em 2005, mas a propagação do ódio só aumentou.)
HISTÓRIA B
Em 2 de maio de 2004, o
carro da assistente social Tali Hatuel, que auxiliava israelenses vítimas do terror e morava na então colônia de Gush Katif, em Gaza, foi alvejado por terroristas palestinos logo após ela ter pego as crianças na escola. O carro saiu da estrada. Os terroristas palestinos aproximaram-se e mataram todos os ocupantes do veículo: Tali, que estava grávida de oito meses, bem como suas outras quatro filhas, de 11, 9, 7 e 2 anos. Os jovens palestinos foram celebrados como heróis em Gaza. Não houve uma única voz palestina oficial criticando publicamente os assassinos.
O marido de Tali, David Tahuel, ficou sabendo do evento pouco depois. Poderia ter reagido atacando árabes com uma metralhadora. Poderia, como pensou, ter se suicidado. Mas escolheu a
vida: embora as marcas da tragédia ainda estejam presentes, ele casou-se novamente e tem hoje uma filha de um ano.
MORAL
Há alguma moral da história? Não sei. São duas vidas de civis inocentes, pessoas simples e - quero acreditar - fundamentalmente boas, cujas vidas foram praticamente destruídas pela tragédia de um conflito.
São histórias iguais? Não, não são iguais, mas a diferença não está tanto na reação das vítimas, como naquela das respectivas sociedades (falo mais sobre isso mais adiante).
Não sei quais lições se podem tirar do episódio, se é que se pode tirar alguma. Mas não acredito que a exaltação do "homem-bomba" seja uma delas.
(Nota adicional: as vítimas do conflito árabe-israelense desde 1950 equivalem a 0,06 % das mortes em conflitos em todo o mundo no mesmo período. Se nos limitarmos ao número de muçulmanos mortos por Israel, verificamos que seu número equivale a 0,3% dos muçulmanos mortos em conflitos nesse período. Quem matou os outros
99,7 %?).